“Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Essa frase é do inglês Thomas Hobbes, um dos filósofos do pensamento liberal moderno. Eu sempre me pego pensando na força dessa sentença. A contundência de um homem confessando seu medo diante do público. Ao mesmo tempo, é estrondosa a constatação de como essa confissão íntima fabricou um dos principais pilares do pensamento moderno ocidental. Um homem branco europeu com medo de outros homens, o pesadelo da guerra de todos contra todos, a confissão da vulnerabilidade, teoria política que pede socorro e salvação logo na primeira linha.

Meu pai costumava me dizer: “minha filha, você precisa ter medo. Não saia andando na rua achando que nada pode te acontecer”. Ele, que tem bem mais dificuldade para expor suas vulnerabilidades e medos, que nunca escreveu um tratado político, sempre tentou me transmitir essa “pedagogia do medo” como forma de proteção e segurança. Aliás, eu percebi bem rápido que os homens estão sempre tentando proteger as suas mulheres de outros homens, pois é através das mulheres que eles comunicam seu poder.  

Todos os dias temos que administrar o medo dos homens e logo entendemos que essa vulnerabilidade, ao invés de buscar formas de convivência que permitam criar laços de cooperação e confiança, ao invés de buscar afirmar a urgência da criação de uma vida fundada na liberdade e na afeição pela diferença inaugura, ao contrário, a ideia onde os homens decidiram trocar a liberdade pela segurança. A construção desse medo ergueu muros.

A promessa de uma proteção permanente, no entanto, exige o compromisso com um outro homem, o mais poderoso de todos, aquele capaz de punir e castigar em nome da segurança coletiva. À essa entidade os homens deram o nome de Estado. É curioso o que eles decidiram fazer com a incapacidade de reconhecer ou de afirmar a própria vulnerabilidade, com a fragilidade de uma sociedade que, desigual, precisa a todo custo “pacificar” as revoltas, queimar mulheres em fogueiras e acusá-las de ter conexões sobrenaturais com demônios. As mulheres acusadas de bruxaria convocavam forças coletivas contra os monopólios masculinos da vida: o casamento, a medicina, o trabalho. “Minha mãe pariu gêmeas, eu e a desobediência” seria a versão bruxa de uma nova forma de sociedade.

O Estado moderno é feito de uma poderosa honra masculina, também conhecida como “honra nacional” e é capaz de mobilizar guerras e extermínio em seu nome. A história do nosso modelo econômico é abundante em violência. “Proteger”, dizem. Quando sua soberania é posta em cheque, eles esperam que um homem mais forte apareça para resgatar sua honra e garantir seu mandato de masculinidade na ordem doméstica e cotidiana – o marido sempre esteve para sua esposa como o soberano para os súditos.

Sabemos que não há necessidade de proteção sem que haja um inimigo e que não há um projeto de Estado nacional sem que exista uma caçada contra aqueles e aquelas que ameaçam o “regime da segurança”. 

Mas afinal, o que é tão frágil para os homens brancos e poderosos? Por que o seu lugar de fala sempre foi produzido pela língua do medo e da punição?

1. Condição oposta ao Estado de Direito. Caracteriza-se pela suspensão de direitos e garantias constitucionais, além de concentrar o poder político.

A história nos mostra que o ‘Estado de exceção¹’ no qual vivemos é a regra. Exemplos como a chamada “guerra ao terror” promovida pelos EUA, que se estende até a “guerra às drogas” em toda a América Latina (legitimando o extermínio da população negra e periférica) são exemplos de como governos se fundam e se sustentam na permanente fabricação do medo como modo de vida.

Isso se reflete para nós através desse urbanismo do medo que ergue cidades muradas enquanto a midiatização do extermínio, conduzida pelos muitos “Cidades Alertas” e “Datenas”, confere a legitimidade necessária para as ações mortíferas das polícias e políticas do encarceramento em massa. Nosso cotidiano, atravessado por isso que chamarei de “regime do medo”, nos faz imaginar cidades contaminadas por perigos e cujo único remédio é o higienismo urbano, a esterilização da vida urbana. Isso se expressa nas arquiteturas assépticas dos shoppings, dos condomínios, nos carros blindados, nas remoções forçadas.

Esse urbanismo do medo elege os corpos matáveis e os não matáveis. O inimigo produzido também precisa ter cor. As feministas negras nos mostram como a construção do poder masculino branco é feita também da impossibilidade estrutural dos homens negros terem acesso a ele. Gênero e raça, longe de serem compartimentos anexos para a compreensão do poder constituem-se hoje, mais do que nunca, como seu próprio fundamento. Marielle Franco teve seu corpo paralisado por tiros, já que não podia ser pelo medo. Ela nunca acreditou na promessa da segurança. Mulher negra e favelada que anunciava a farsa de uma guerra de Estado contra o inimigo criado pelos delírios do homem branco colonizador e suas promessas de segurança armada.

2. O termo milícia está associado a práticas ilegais de grupos formados majoritariamente por agentes do Estado (policiais, bombeiros, agentes penitenciários, militares, etc.) fora de serviço ou em atividade nas comunidades urbanas de baixa renda. Em geral, atuam sob a alegação de combater o crime e se financiam através da extorsão da população, do tráfico de drogas, da exploração clandestina de gás, televisão a cabo, eletricidade, água, máquinas caça-níqueis, entre outros.

O urbanismo do medo é aquele que, cada vez mais, entrelaça as fronteiras do legal e do ilegal: milícias², crime organizado, os monopólios midiáticos e, por que não, o próprio Estado. Cada qual com seu tribunal.

O aumento do desemprego e da concentração de riqueza no mundo produz a sensação generalizada de impotência entre os homens que não são ricos. Por outro lado, mulheres pobres reconstroem suas possibilidades de existência através de outros meios. É preciso reinventar as formas de desejar a liberdade, de escapar do medo e de denunciar o poder pátrio, o poder do pai, da propriedade, do marido, do Estado. Os autoritarismos políticos prometem a reconstituição dessa potência masculina desestabilizada. Michel Temer é simbólico ao acionar a intervenção militar no Rio de Janeiro. Reinstaurar a ordem da casa, da cidade, do país, do mundo.

Recentemente acordei com uma mensagem da minha mãe que compartilhava imagens de cartazes que estão sendo colados em padarias e açougues do Rio de Janeiro: “dicas para transitar em uma cidade em guerra”, dizem eles. Esses cartazes, além de ensinarem a rastejar em caso de tiroteio, fazem com que a minha mãe não consiga mais sair de casa. Como lutar e resistir com um corpo paralisado pelo medo?

Muitas das mulheres que chegam às ocupações urbanas dos sem-teto na periferia de São Paulo são atravessadas por essa paralisia do corpo. “Antes eu não conseguia fazer nada. Só havia tristeza e eu não podia mais sair da cama” me diz uma delas. As ocupações urbanas são laboratórios vivos de um outro modo do fazer-cidade, são a afirmação de um urbanismo do comum contra o urbanismo do medo. São uma outra forma política que se assenta no cotidiano propondo outras formas de se produzir a vida em comum; estratégias que, aliás, estiveram historicamente presentes no cotidiano das mulheres negras. Presentes, quase sempre, como questão de sobrevivência: cooperação, vizinhança, cuidados e cozinhas compartilhados, enfim, toda uma economia da confiança. Se o medo e o senso de precariedade do corpo produziram no homem branco um desejo de extermínio do outro, nas ocupações urbanas esse mesmo medo se converte em luta contra a paralisia, transformando a precariedade do corpo em uma contra-política na qual os sujeitos se fazem pelas relações de confiança e cuidado. 

As ocupações nas bordas da cidade não são o passado, não são um “resquício” de civilização. Elas são a própria possibilidade de outro futuro. Contrariando Hobbes, Nina Simone gostava de afirmar: “liberdade é não ter medo”.

O aumento da concentração de riqueza no mundo produz uma sensação generalizada de impotência entre os homens. Do outro lado, mulheres pobres reconstroem suas possibilidades de existência reinventando formas de desejar a liberdade e de escapar do medo

O gênero do medo

O gênero do medo

15.05.18 /Ensaio
Dentro, Fora, TransForaChristian Dunker

15.05.18 /Arte
Passo / Espaço / PassoNina Botkay

11.09.20 /Ensaio
Corpo-território travesti e a cidadeUma Reis Sorrequia

05.10.18 /Ensaio
Uma cidade agoraGermano Dushá

12.08.19 /Arte
Entre-foraMaria Noujaim

17.09.18 /Ensaio
Meu corpo molda a cidadeMaria Luiza Floriano

30.12.18 /Arte
Unhas rasgarão cidadesAna Matheus Abbade

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